Tibete — Não há como ignorá-lo

Lia Diskin

Este texto é uma versão condensada do artigo “Tibete: não há como ignorá-lo”, publicado no Livro do Ano 2010 da Enciclopédia Barsa, gentilmente cedido pela autora e pelo editor Paulo Verano (@pauloverano)


Foto: Jungli Tsai, 2006
A despeito das previsões feitas por acadêmicos e cientistas sociais da década de 1960, o interesse pelas religiões e práticas espirituais não esmoreceu. E este fenômeno pode verificar-se mesmo no mais improvável dos países — a República Popular da China, onde o ateísmo é oficialmente sustentado há mais de meio século. Mosteiros e casas de retiro vivem lotados de jovens chineses em busca de um sentido maior para seus dias; peregrinações ao templo Buda de Jade em Xangai formam um rio humano incessante; obras de arte sacra são disputadas em leilões a preços cada vez mais exorbitantes; e em Xiamen as feiras anuais de objetos artesanais budistas congregam centenas de milhares de visitantes e compradores. O próprio presidente Hu Jintao chegou a expressar em discurso de janeiro de 2008 que “as religiões, incluso o budismo, podem colaborar para atenuar as tensões originadas pela disparidade de renda”.

Este é um cenário novo — não previsível nem programado — na República Popular da China, onde talvez seja possível revisar conceitos e políticas ideológicas que há 50 anos inviabilizam um diálogo assertivo entre as autoridades do Partido Comunista e as demandas legítimas do povo tibetano, que diariamente luta para preservar sua identidade cultural, suas tradições religiosas, seu idioma, costumes e herança histórica.


Memorando sobre Autonomia Genuína para o Povo Tibetano

A rodada de conversações entre representantes do Dalai Lama e do governo chinês, iniciada em 2002, foi interrompida em novembro de 2008, após realização do oitavo encontro. Na ocasião, representantes do Dalai Lama apresentaram o Memorando sobre Autonomia Genuína para o Povo Tibetano para discussão visando à estabilidade e desenvolvimento do Tibete, por solicitação do próprio governo chinês em julho de 2007, durante o sexto encontro. Essa proposta foi rejeitada na sua totalidade, sem que se abrisse espaço para análise, deliberações ou negociações, alegando-se que “O Dalai Lama não tem direito de falar sobre a situação no Tibete ou em nome do povo tibetano”. (Fonte: Kalsang Gyaltsen em Audiência do Parlamento Europeu, Bruxelas, 31 de março de 2009). Cabe aqui indagar quais as razões de haver, um ano antes, solicitado propostas que beneficiassem o povo tibetano se, de fato, não havia o menor interesse em estudá-las e discuti-las?

Entre as sugestões levantadas pelo Memorando estão duas da maior relevância para a vida dos seis milhões de tibetanos:

1) A proteção e o desenvolvimento da identidade tibetana em todos os seus aspectos, tanto culturais quanto espirituais, e
2) manter sob uma única estrutura administrativa todas as áreas designadas pela República Popular da China como áreas tibetanas autônomas.

Hoje, as comunidades tibetanas são governadas e administradas sob diferentes autoridades provinciais e regionais, o que provoca desenvolvimento econômico e oportunidades desiguais, além de fragmentações e conseqüente perda da unidade constitutiva de identidade em torno de valores historicamente construídos. Cabe lembrar que uigures e mongóis – nações minoritárias que também integram a República Popular da China – têm autonomia e unidade regional. O documento reitera, mais uma vez, que o objetivo das conversações bilaterais não é pleitear a independência do Tibete, mas alcançar uma autonomia genuína do povo tibetano no escopo da Constituição da República Popular da China que viabilize a satisfação das necessidades básicas e a dignidade de seus membros.


Doze Sugestões para Lidar com a Situação Tibetana

Apesar da repressão, da vigilância estrita da imprensa, da intimidação a quaisquer sinais de crítica ao regime, do monitoramento da internet e dos blogs que teimam em pipocar de maneira clandestina, a informação começa a circular entre jovens universitários que driblam os mecanismos de censura. Isso é o que relata a escritora e poeta Tsering Woeser, considerada a mais influente intelectual tibetana da atualidade. Ela escreve em mandarim, pois durante seus anos de estudante o idioma tibetano estava proibido nas salas de aula pelo governo chinês. A proibição durou de 1960 a 1970. Seu blog Tibete Invisível (http://woeser.middle-way.net/) recebeu a visita de mais de três milhões de internautas em 2008, quando dos sucessivos protestos em massa nas regiões tibetanas.

Paradoxalmente, o encontro entre as novas tecnologias de comunicação e o renascimento das práticas espirituais no mundo todo está criando uma aproximação entre os fatos, as versões, as interpretações e aspirações dentro da própria China que, necessariamente, não poderá ignorar as sugestões oferecidas por mais de 378 intelectuais chineses a respeito da condição de vida dos tibetanos. Escritores, acadêmicos, juristas, artistas — grande parte deles moradores em Beijing — sensibilizados pelos acontecimentos ocorridos em 2008, que expuseram o ressentimento, a humilhação acumulada em décadas de opressão e a insegurança generalizada do povo tibetano quanto ao seu futuro – redigiram uma proposta intitulada Doze Sugestões para Lidar com a Situação Tibetana, que encaminharam ao governo central questionando a insistência deste em acusar o Dalai Lama como mandante e orquestrador das revoltas tibetanas de 2008, quando os fatos são evidentes e não dão lugar a equívocos: os tibetanos são cidadãos de segunda classe nas suas próprias terras.


O sentimento de opressão é crescente, visto que os distúrbios no Tibete nos anos 1980 – diz o documento – estiveram circunscritos a Lhasa, ao passo que os atuais (2008/2009) espalharam-se por quase todas as áreas tibetanas. A política implementada nessas áreas está provocando animosidade entre as etnias que partilham um mesmo território. Se a China espera preservar sua unidade e uma convivência pacífica, deveria evitar as divisões internas entre as nações, as culturas que a integram.

O documento finaliza apelando aos líderes chineses para que entrem em diálogo direto com o Dalai Lama e deixem de hostilizá-lo. (Assinado por Wang Lixiong e outros 377 intelectuais chineses http://www.tibet-china-conference.org/).

Este texto é uma versão condensada do artigo “Tibete: não há como ignorá-lo”, publicado no Livro do Ano 2010 da Enciclopédia Barsa, gentilmente cedido pela autora e pelo editor Paulo Verano (@pauloverano)

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